Este sítio está destinado a se grilar. Postular sobre os g r i l o s da existência humana. Poetizar e peticionar sobre todos
os assuntos inteligentes que
causam grilos nas pessoas que são de boa fé...


domingo, 17 de julho de 2011

GRILO LITERÁRIO: A FLAUTA E O SABIÁ

Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa charão, jazia uma flauta de
prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola suspensa ao teto, morava
um sabiá. Estando a sala em silêncio, e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis
que o sabiá, contente, modula uma ária.
Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar no estojo como a zombar do módulo
cantor silvestre.
- De que te ris? indaga o pássaro.
E a flauta em resposta:
- Ora esta! pois tens coragem de lançar guinchos diante de mim?
- E tu quem és? ainda que mal pergunte.
- Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor,
Mársias, lutou com Apolo e venceu-o. Por isso o deus despeitado o imolou.
Lê os clássicos.
- Muito prazer em conhecer.... Eu sou um mísero sabiá da mata, pobre de
mim! Fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que
lá foi. Dize-me: que fazes tu?
- Eu canto.
- O ofício rende pouco. Eu que o diga que não faço outra coisa. Deixarei,
todavia, de cantar -- e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez,
sendo mudo, não me houvessem escravizado -- se, ouvindo a tua voz,
convencer-me de que és superior a mim. Canta! Que eu aprecie o teu
gorjeio e farei como for justiça.
- Que eu cante?!...
- Pois não te parece justo o meu pedido?
- Eu canto para regalo dos reis nos paços; a minha voz acompanha hinos
sagrados nas igrejas. O meu canto é a harmoniosa inspiração dos gênios ou a
rapsódia sentimental do povo.
- Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvir-te e para proclamar-te,
sem inveja, a rainha do canto.
- Isso agora não é possível.
- Não é possível! Por quê?
- Não está cá o artista.
- Que artista?
- O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem
ele nada posso fazer.
- Ah! É assim?
- Pois como há de ser?
- Então, minha amiga -- modéstia à parte -- vivam os sabiás! Vivam os sabiás
e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do
próprio peito o alento com que fazem a melodia. Assim da tua vanglória há muitos que se ufanam.
Nada valem se os não socorre o favor de alguém; não se movem se os não
amparam; não cantam se lhes não dão sopro; não sobem se os não empurram. O
sabiá voa e canta --  vai à altura porque tem asas, gorjeia porque tem voz. E
sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio, os que mais alegam
triunfos. Flautas, flautas ... cantam nos paços e nas catedrais ... pois venha daí um dueto
comigo. E, ironicamente, a toda a voz, pôs-se a cantar o sabiá, e a flauta de prata, no
estojo de veludo... moita.
Faltava-lhe o sopro.

(Coelho Neto)

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