Em rico estojo de veludo, pousado sobre uma mesa charão, jazia uma flauta de
prata. Justamente por cima da mesa, em riquíssima gaiola suspensa ao teto, morava
um sabiá. Estando a sala em silêncio, e descendo um raio de sol sobre a gaiola, eis
que o sabiá, contente, modula uma ária.
Logo a flauta escarninha põe-se a casquinar no estojo como a zombar do módulo
cantor silvestre.
- De que te ris? indaga o pássaro.
E a flauta em resposta:
- Ora esta! pois tens coragem de lançar guinchos diante de mim?
- E tu quem és? ainda que mal pergunte.
- Quem sou? Bem se vê que és um selvagem. Sou a flauta. Meu inventor,
Mársias, lutou com Apolo e venceu-o. Por isso o deus despeitado o imolou.
Lê os clássicos.
- Muito prazer em conhecer.... Eu sou um mísero sabiá da mata, pobre de
mim! Fui criado por Deus muito antes das invenções. Mas deixemos o que
lá foi. Dize-me: que fazes tu?
- Eu canto.
- O ofício rende pouco. Eu que o diga que não faço outra coisa. Deixarei,
todavia, de cantar -- e antes nunca houvesse aberto o bico porque, talvez,
sendo mudo, não me houvessem escravizado -- se, ouvindo a tua voz,
convencer-me de que és superior a mim. Canta! Que eu aprecie o teu
gorjeio e farei como for justiça.
- Que eu cante?!...
- Pois não te parece justo o meu pedido?
- Eu canto para regalo dos reis nos paços; a minha voz acompanha hinos
sagrados nas igrejas. O meu canto é a harmoniosa inspiração dos gênios ou a
rapsódia sentimental do povo.
- Pois venha de lá esse primor. Aqui estou para ouvir-te e para proclamar-te,
sem inveja, a rainha do canto.
- Isso agora não é possível.
- Não é possível! Por quê?
- Não está cá o artista.
- Que artista?
- O meu senhor, de cujos lábios sai o sopro que transformo em melodia. Sem
ele nada posso fazer.
- Ah! É assim?
- Pois como há de ser?
- Então, minha amiga -- modéstia à parte -- vivam os sabiás! Vivam os sabiás
e todos os pássaros dos bosques, que cantam quando lhes apraz, tirando do
próprio peito o alento com que fazem a melodia. Assim da tua vanglória há muitos que se ufanam.
Nada valem se os não socorre o favor de alguém; não se movem se os não
amparam; não cantam se lhes não dão sopro; não sobem se os não empurram. O
sabiá voa e canta -- vai à altura porque tem asas, gorjeia porque tem voz. E
sucede sempre serem os que vivem do prestígio alheio, os que mais alegam
triunfos. Flautas, flautas ... cantam nos paços e nas catedrais ... pois venha daí um dueto
comigo. E, ironicamente, a toda a voz, pôs-se a cantar o sabiá, e a flauta de prata, no
estojo de veludo... moita.
Faltava-lhe o sopro.
(Coelho Neto)
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